Uma espécie de Face Oculta da Lua

Retomando a força da opinião e da reflexão e deixando de lado as notícias do dia, o que já não é inédito por estes lados, dá-se seguimento este fim de semana à publicação de um texto de reflexão do meu amigo Nuno Lorvão, também conhecido por Juxpot e que surgiu inicialmente no Fórum do Autosport Online. Com uma base muito interessante e sólida sobre o papel dos navegadores nos Ralis, o Juxpot 'deu-me' a liberdade de partilhar neste blogue uma reflexão de alguém que, além do dom da escrita, tem uma forma de pensar e de argumentar sempre pertinente...

"Os navegadores de Ralis, também denominados Co-Pilotos ou, na gíria do automobilismo, de igual forma conhecidos como «Penduras», são uma espécie de «Face Oculta da Lua»: sabemos que 'estão lá', têm uma função tão ou mais relevante no sucesso de uma prova ou de um campeonato do que os pilotos propriamente ditos mas, sobretudo no reconhecimento mediático (o campo fértil onde hoje em dia tudo acontece) ninguém os 'vê'. O desporto automóvel, sobretudo no plano das provas e campeonatos organizados à escala global, é pródigo em produzir heróis e alimentar lendas que, não raras vezes, perduram muito para além do ‘terminus’ das respectivas carreiras. A mediatização exacerbada, para o melhor e para o pior, que hoje envolve os principais campeonatos do mundo ao nível do automobilismo, projecta incessantemente em todo o planeta uma série de nomes e rostos que nos habituamos a admirar e seguir. Todavia o automobilismo em geral também produz as suas injustiças e é por vezes cruelmente avesso em reconhecer o trabalho de muitas pessoas que, longe do palco dos órgãos de comunicação social, são verdadeiramente decisivas para o êxito de um projecto ou para a construção das vitórias. Hoje, com referi anteriormente, quem não aparece com regularidade nos ecrãs das televisões, quem não se publicita pela via da Internet, quem não se divulga através dos jornais e revistas, acaba por ser uma personalidade quase inexistente e sem visibilidade neste mundo global.

Tudo isto vem a propósito dos Ralis, e da indiferença a que são votados, então, os co-pilotos, ou navegadores, como quiserem. Muitas vezes (quase sempre…), os créditos e os louros de um bom resultado vão para o piloto, tendendo o papel do navegador a passar para segundo plano. Contudo, dentro de um carro de Ralis há uma verdadeira equipa (conceito manifestamente em perda...) na qual os actores têm um papel bem definido e cada um deles tem a sua quota-parte de responsabilidade nos sucessos e insucessos da mesma. Não se pode dizer, em rigor, que é mais importante ou decisivo o papel do piloto ou do seu navegador: são missões que se complementam entre si e que dependem uma da outra, unidas por essa espécie de cordão umbilical que é a luta contra o cronómetro. Se fizermos uma retrospectiva histórica, quer no plano nacional, quer ao nível do campeonato do mundo de Ralis, facilmente recordamos os nomes e rostos dos pilotos que mais se destacaram. Mas por trás desses pilotos, desses virtuosos do volante que fizeram e fazem as delícias dos adeptos de Ralis em todo o planeta, há outros rostos fundamentais nos sucessos e momentos mágicos que só os Ralis, atrevo-me a arriscar, podem proporcionar. Um carro de Ralis, é muito mais do que um carro guiado com talento; a um «ás do volante» nas provas de estrada corresponde um outro «às» que, neste último caso, é em muitas ocasiões o «trunfo» que decide e dá vitórias. Perguntará, então, o caro leitor porque motivo, afinal, é o papel do navegador assim tão relevante. Façamos um exercício de imaginação.


Imagine o caro leitor o que é ter que 'cantar' notas para alguém que vai a seu lado (e que confia em si cegamente, dando-lhe por isso enorme pressão e pouca margem de erro) durante mais de 30 minutos consecutivamente (como ocorreu ainda ontem numa classificativa do Rali de Monte Carlo). Repare: não há qualquer margem para falar um segundo mais cedo nem mais tarde, tendo que ser no momento exacto. Não pode engasgar-se, nem tão pouco engolir em seco. Não pode gaguejar ou hesitar. O seu tom de voz tem de ser suficientemente claro e impositivo para que seja assimilável pelo piloto em perfeitas condições, mas não pode ser demasiado alto de forma a que diminua a concentração a quem guia. Aliado a tudo isso, tem que ter 'um olho no burro e outro no cigano', que é como quem diz olhar em simultâneo a estrada que está à sua frente, percepcionar a distância para a próxima curva, mas ao mesmo tempo conseguir ler as anotações do seu caderno de notas. Se o piloto pode corrigir um erro ou excesso de condução com um golpe de volante, o ritmo frenético dos Ralis não perdoa a mínima falha ao Co-Piloto.


Caro leitor:

Já viu ou leu um Road-Book oficial de uma prova de Ralis? São uns livrinhos com centenas de páginas repletos de sinalética, que desde a saída do Hotel (muitas vezes às primeiras horas da manhã) são a 'bíblia' e ferramenta de trabalho dos navegadores de Ralis. Saber interpretá-los na perfeição (o que implica horas de estudo prévias), condicionado por vezes pela pressão do tempo que se vai esgotando do parque de assistência para a classificativa (ou entre estas), acaba quase por ser uma arte bem mais difícil do que assimilar para o comum dos condutores as 'meras' sinalizações do Código da Estrada. Mas há mais. Antes de cada prova, o Caderno de Notas (muitas vezes visto, revisto e corrigido antes do rali propriamente dito, exercício quase sempre repetido entre etapas) tem que ser impecavelmente transcrito, obrigando os navegadores a realizá-lo com perfeccionismo para memória futura. Tem forçosamente de ser um minucioso e verdadeiro trabalho de paciência, passar para forma de letra e de gráficos 30 ou mais quilómetros de classificativa, ou os mais de 300 quilómetros que caracterizam os Ralis pontuáveis para o Campeonato do Mundo. Se tudo isto já é muito, sublinho-lhe ainda, caro leitor, a necessidade de ter uma noção de tempo especialmente apurada. Ao que tudo se disse atrás, o navegador de Ralis tem de ser obrigatoriamente metódico e organizado para não errar nos controlos de partida e de chegada em cada troço, precisando também de avaliar o exacto momento de entrada e saída do parque de assistência. Quantos e quantos Ralis não se perdem ou ganham por erros dos navegadores nesta questão?

Quem se senta no banco do lado direito de um carro de Ralis, também também de, em plena classificativa, olhando para os tempos parciais dos adversários, percepcionar o nível de andamento do seu piloto, incentivando-o se necessário para puxar um pouco mais pelo ritmo de prova, ou tendo de ter a arte e engenho para lhe refrear os ímpetos, de forma subtil ou mais enfática. O presente tópico, mais não pretende do que promover uma simples humilde homenagem a todos aqueles e aquelas que, de forma abnegada e apaixonada, trocam o reconhecimento mediático e as honrarias daí advenientes, por todo um trabalho de sapa feito longe de holofotes e sem a distinção que lhe é (mais que) merecidamente devida. Na nossa memória é raro ficar guardada a imagem do rosto de um Co-Piloto de Ralis; a nossa memória é, por vezes, selectiva em excesso. Se lhe falar, a título de exemplo, nos nomes de Miguel Oliveira, Edgar Fortes, Fernando Prata, Carlos Magalhães, Nuno Rodrigues da Silva, Luís Ramalho, Miguel Ramalho, António Manuel, Redwan Cassamo, Mário Castro, Miguel Borges, Ricardo Caldeira, Luís Lisboa, Paulo Grave, Sérgio Paiva, José Janela ou Ornelas Camacho, ou nos de, à escala internacional, Ilkka Kivimaki, Jean Todt, Fabrizia Pons, Marc Marti, Fred Gallagher, Nick Grist, Michael Park, Luís Moya, Timo Rautiainen, Daniel Elena, Seppo Harjanne, Tiziano Sivieiro, David Richards. Daniel Grataloup, Phil Mills, Sérgio Cresto, Christian Geistdorfer, Arne Hertz, Juha Piironen, Bjorn Cederberg, Denis Giraudet, Risto Mannisenmaki ou Robert Reid, o caro leitor pode até não conseguir identificar os seus rostos. Todavia a prova provada da sua importância é que, na maioria dos casos, confio que o caro leitor saberá perfeitamente a que pilotos os mesmos ficaram indelevelmente associados.

Nuno "Juxpot" Lorvão

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